Como Paul Schreiner, de 38 anos, foi deportado dos EUA mesmo sendo filho de pais americanos e tendo duas filhas que residem lá

por Bruno Cunha

A revista época noticiou o caso de Paul Fernando Schreiner, de 35 anos, que revelou um verdadeiro limbo jurídico e dividiu opiniões de internacionalistas. Paul foi adotado em 1988 em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, quando tinha apenas quatro anos. Na época o alvará de guarda foi emitido apenas com base numa certidão de nascimento que não continha o local de nascença, nem a filiação de Paul. A nomeação era breve: Fernando. A certidão foi considerada sem efeito pelo próprio cartório, e a taxa de serviço estornada.

Paul foi adotado por um casal americano em Nebraska e lá residiu toda sua vida. Não fala uma palavra sequer de português. Na manhã de 22 de outubro de 2017, Paul foi parado numa blitz destinada a capturar candidatos à deportação e levado para uma custódia do Controle de Imigração (ICE, na sigla em inglês) dos EUA. Foi informado que seria deportado, pois era imigrante ilegal no país. Paul portava todos os documentos exigidos: carteira de motorista e documento de seguridade social, mesmo assim, é considerado ilegal para a administração Trump que tenta bater recorde de deportações. Estima-se que cerca de 30 mil adultos estejam na mesma situação no país, filhos de pais adotivos que realizaram o processo de forma precária, muitas vezes sem a assistência legal adequada.

O problema foi parcialmente enfrentado por uma lei sancionada pelo presidente Bill Clinton em março de 2001, que dava cidadania plena a qualquer menor adotado no exterior por americanos. Porém persistiu a insegurança para adotados que já haviam completado 18 anos. A lei não foi considerada retroativa. Paul completou 18 anos seis semanas antes da lei.

Esta foi a terceira vez que Paul foi detido no ICE e enfrentou o processo de deportação. Nas duas oportunidades anteriores, em 2004 e 2017, contudo, o Itamaraty negou-se a expedir documentos de viagem para a deportação. O cônsul-geral então arguiu que a deportação de um adotado sem quaisquer laços com seu país de origem “seria considerada uma violação dos direitos humanos” e que o Brasil não emite documentos de viagem para pessoas nessa situação, “a não ser que o próprio adotado o requeira”.  Em 2017, diante de situação parecida, o Itamaraty posicionou-se outra vez contra a deportação. No documento repete, de forma breve, o teor da negativa de 2004. 

Sete meses depois, na terceira tentativa, Paul, que já se habituava à especificidade de sua situação e aguardava nova negativa do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, viu-se surpreendido quando o consulado de Los Angeles cedeu aos pedidos americanos e emitiu um atestado de nacionalidade. Nele, refere-se a Paul como Fernando, sem esclarecer quem são seus pais nem em que lugar do Brasil ele nasceu —dois requisitos fundamentais para definir nacionalidade. O Itamaraty afirmou que se tratava de “cidadão brasileiro que não dispunha de status migratório regular em país estrangeiro e era objeto de ordem de deportação”

De posse do atestado de nacionalidade, Paul foi então deportado para o Brasil. Vive hoje em Niterói, hospedado de favor na casa de um pastor congregacional. Passa o dia inteiro no computador, falando com seus parentes norte-americanos. Ele tem duas filhas nos Estados Unidos.

Uma semana depois da chegada num país desconhecido para Paul, ele deu entrada na polícia federal no pedido para ser considerado apátrida. Até hoje apenas duas pessoas tiveram esse status reconhecido no Brasil. A grande pergunta é: o reconhecimento de apatridia é viável?

Em primeiro lugar, devemos analisar a lei norte-americana para definir se ele tem ou não direito à nacionalidade.  É considerado cidadão nato estadunidense quando, ainda que nascido em solo estrangeiro, um ou os dois pais forem norte-americanos e vivam com o filho nos EUA. Teoricamente ele preencheria esse requisito, porém os pais não requereram a nacionalidade do filho, desejando que ele próprio entrasse com os papéis na adolescência. A lei de cidadania especifica de forma clara que, para filhos adotados, o requerimento deve ser feito antes de completados 18 anos. Paul, então, perdeu o direito a ser estadunidense nato em 2001. Os pais não foram legalmente aconselhados de forma adequada e alegam que não sabiam desse critério. 

Outra possibilidade para adquirir a nacionalidade seria por meio da naturalização. É necessário possuir green carde não ter antecedentes criminais, além de preencher alguns outros requisitos. Paul tem condenação da justiça de Nebraska. Foi por esses motivos que Paul não conseguiu obter a cidadania, apesar de ter passado praticamente toda sua vida nos Estados Unidos e não conhecer outro idioma que não seja o inglês. 

Uma vez privado da cidadania americana, resta saber se o Estado brasileiro poderá declará-lo apátrida. O tratado internacional mais importante acerca do tema é a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, a qual o Brasil ratificou em 2008. Como o próprio nome já sugere, a acepção internacional é de que a apatridia deve ser ao todo evitada, pois viola direito básico de qualquer ser humano de obter uma nacionalidade, algo essencial para o direito à personalidade e a dignidade humana. Neste sentido, a convenção diz:

Artigo 7 (a) Se a legislação de um Estado Contratante permitir a renúncia à nacionalidade, tal renúncia só será válida se o interessado tiver ou adquirir outra nacionalidade. 

Artigo 8 1. Os Estados Contratantes não privarão uma pessoa de sua nacionalidade se essa privação vier a convertê-la em apátrida.

Entende-se, portanto, que a nacionalidade, qualquer que seja, é única maneira de evitar a apatridia e garantir os direitos fundamentais do cidadão. A única exceção à regra, também contida na convenção, seria no caso de vítima de perseguição em determinado país a qual a pessoa é nacional. Esta exceção é baseada nos artigos 13 e 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que tratam basicamente do direito à liberdade de locomoção e possibilitaria uma pessoa ser declarada apátrida mesmo sendo nacional de algum país.

Ora, este não é o caso presente. A menos que se alegue uma interpretação teleológica da relação que a convenção faz com Declaração Universal, parece impossível juridicamente o pedido de Paul.

A maior incongruência nesta trama é a obscuridade da concessão do atestado de nacionalidade pelo Itamaraty. Questionado pela reportagem qual foi a base documental para concedê-la, o órgão não apresentou resposta dizendo que “o local de nascimento e a nacionalidade de Fernando jamais foram colocados em dúvida, inclusive pelo próprio Fernando, ao longo de vários anos”.

Resta saber também o porquê da mudança de posicionamento do consulado. Caso permanecesse nos EUA, ainda que detido, poderia utilizar-se de instrumentos jurídicos naquele país, inclusive de habeas corpus. Questionado, disse que preferia ficar sob custódia do Controle de Imigração a permanecer no Brasil, longe de suas filhas.

Nacionalidade é uma qualidade daquilo que é nacional, que é próprio da nação, da pátria. O termo “nacionalidade” tem origem provável na palavra francesa “nationalité”, cujo significado primordial, antes do conceito político atribuído ao longo do século XIX, se refere ao “sentimento nacional” ou “nacionalidade cultural”. 

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